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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os seus objectivos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, adormecidas... ou anestesiadas por fórmulas e conceitos preconcebidos. Embora parte dos seus artigos possam "condimenta-se" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade com libertinagem de expressão" no principio de que "a nossa liberdade termina onde começa a dos outros".(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico e por vezes corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausadamente, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas análises, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell).Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de blogues a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, o que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão com alguma delas... mas somente o enriquecimento com a sua abertura e análise às diferenciadas ideias e opiniões, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais e válidos para todos nós, dando especial atenção aos "nossos" blogues autóctones. Uma acutilância daqui, uma ironia dali e uma dica do além... Ligue o som e passe por bons e espirituosos momentos...

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

OS BARULHOS DO SILÊNCIO II



OS BARULHOS DO SILÊNCIO II
Segundo capítulo – A viagem
O Cidadão, depois de ter evitado uma carga de água, que lhe poderia provocar uma valente broncopneumonia e deixar de chatear o Camões, tendo que ir parar ao hospital, para além de aturar as melgas das visitas… - “olha, mais uma bolachinha”, “a almofada está bem assim”, “queres puxar-te mais para cima?”, “trago-te una garrafinha de água?”. E o Cidadão implorar: -“Enfermeira! Tragam-me mas é, uma enfermeira! Essa não, que fico mais doente! Tragam-me a outra! A mais nova !! O quê? Não está? Pode ser uma estagiária que não faz mal nenhum!!!” E também de não se conseguir raspar ao encontro da Deolinda, porque isto das Companheiras… são muuuiiito desconfiadas e querem lá ver que, o Cidadão se encontrava todo equipado com aquela farpela, e de mala de cartão nas unhas ia, sorrateiro, em bicos de pés, a raspar-se de casa quando a gata Cristie se interpôs no seu caminho, de cauda, orelhas e bigodes esticados horizontalmente, pelo do lombo eriçado, garras de fora como nunca tinha visto… exibindo os incisivos… a assobiar que nem uma serpente?? O Cidadão até que achou aquilo estranho… poderia ser do perfume patchouly que tinha adicionado aos sovacos e pelos do peito… mas porque seria que a bichana teria abandonado assim as crias… arrastou-a lateralmente do caminho com a sua biqueira “mata – barata”… mas ao transpor o portão… não é que a Companheira estava à sua espera… de mãos nas ancas… parecia mesmo a Deolinda… mas a expressão facial não coincidia, estava mesmo danada, caraças! O Cidadão, como quem não quer a coisa, espreitou para trás da anca direita da rapariga pois pareceu-lhe vislumbrar um volume… o Cidadão ficou estarrecido! Não é que a Companheira tinha o rolo da massa atrás de si? E para que seria? Cá o Cidadão nem ousou indagar! –“Onde pensas que vais assim todo pipi?” Atirou ela, num tom de voz que não deixava margem para dúvidas! Foi o suficiente para desmotivar o Cidadão, tirar-lhe a pica toda, e… fiiiit! Meia volta… volver!
Desta desfeita, resolveu cumprir o prometido, visitando o amigo “latas”! Com a noite pejada de nuvens, brisa fresca e suave… um teor de humidade latente… lá estava o tipo, precisamente no mesmo local… e na mesma posição! Impressionante, como se consegue manter assim durante tanto tempo!!! Mas desta feita, cá o Cidadão, trouxe uma pequena almofada revestida a napa, não fosse encharcar as nalgas, como sucedeu no primeiro encontro… sentou-se com jeito sobre ela, no muro, junto ao artista... o tipo aparentava estar envolto nos seus pensamentos… porque não deu conta cá da presença! O Cidadão meteu conversa assim:
-Olá!
-Chiça, que me assustaste!
-Também não tens que ser sempre tu a assustares as outras pessoas! Dá aí um aperto de mão!
-Não posso!
-Pois… já me tinha esquecido…
E ficámos ali, lado a lado, olhando o vale escuro, na direcção do rio Zêzere, sem assunto… por uns largos segundos, talvez a ver qual de nós daria o mote á conversa… então cá o Cidadão entrou a matar:
-Sabes… Camões… há muita gente que passa semanas de férias na praia… para ficar assim como tu!
-Assim… como?
-Bronzeados!
-Olha! Vai á merda!
-Conta lá, Camões… na outra conversa tinhas ficado naquelas cenas de te recambiarem para os mares…
-Foi… em 1553 aí pelos finais de Março… que embarquei na nau São Bento, capitaneada pelo Fernão Álvares Cabral pertencente a uma vasta frota… uma viagem que durou seis meses! Sabes onde fui bater com os costados?
-Não!
-A Gôa! Isto aí… pelos finais de Setembro! E não é que fui como soldado raso, apesar dos meus estudos e da minha experiência? Foi do caraças! O que um gajo tem de aturar!
-Mas pertencias a uma família de nobres!
-Nobres, o tanas! Devido á minha vida boémia… isso não me valeu de nada!
-Mas ao menos… a viagem foi curtida… não?
-O que é isso?
-O quê?
-Curtida…
-Bonita… boa!
-Bom… curtidos para mim… são os pimentos…
-Vá, continua e deixa-te de tretas!
-O que é isso?
-O quê?
-Tretas…
-Ah! Conversa fiada… balelas…
-Bom… curtida não foi… logo á partida, surgiu um Velho no Cais do Restelo… que nos pregou uma valente seca com conversas esquisitas e incompreensíveis para a época…

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimenta”

— "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

—"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?



— "Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:
-Chiiiu! Fala mais baixo! Já te está a dar outra vez!!!
-Mas és da censuuura, ou quê? Daí rumámos para o mar alto… Ilha da Madeira… Ilhas Canárias… Cabo Verde e São Tiago… costa de África, passando pelo Senegal… Mandinga que agora é a Guiné…Serra Leoa… rumo a Sul… o mar era calmo… o Atlântico… sabes? Aí, tudo se decidia no segredo dos Deuses… No Olimpo, acontecia uma espécie de “Conselho de Ministros” dos Deuses… Júpiter e Vénus apoiavam os intentos dos navegadores Portugueses… no entanto, o raça do Baco era do contra, mas… até concordava com as opiniões de Vénus… pudera! Plantavam-se Padrões Portugueses por tudo quanto era sítio!
-Estava tudo padronizado…
-Âh?! Não chateies! Mas quando atravessei a linha do Equador… pelas Ilhas de São Tomé… apanhei um grande susto!
-Somos uns assustadiços…
- Irra! Porrque no te callas?! Então não é que me aparece um Rei dentro da nau, vestido de azul, saído não sei de onde, com uma grande coroa e de tridente nas unhas? Até pensei que mo ia espetar! Disseram-me ser o Rei Neptuno! E farto deles, logo me tinha que aparecer mais um pela proa !!! Passei-me dos carretos e ia-lhe dando umas mocadas, quando me explicaram ser uma tradição por estas bandas! E afinal o tipo era um marinheiro mascarado… a besta! Enganou-me bem! Mas daí em diante a coisa andou tremida! Tornado, trombas de água, súbitas trovoadas, e o fogo de santelmo… era dos Diabos!
-E o resto da viagem… foi razoável?
-Razoável?? Não! De seguida aportámos no Congo… Cabinda…escalávamos todos os portos, baías, ilhas e deltas sempre em abastecimento, porque o escorbuto assolava na época! Sabes… havia falta de vitamina C… que encontrávamos nos frutos e vegetais em escassez! Ao transpormos o Sul da costa de África aquilo foi o cabo dos trabalhos! Diria mesmo que foi o Cabo das Tormentas! As naus pareciam cascas de noz num barranho cheio de água agitada! Foi um vomitório pegado! Não é que, entretanto, para complicar as coisas, aparece outro velho lá ao longe? Esse não dizia, mas fazia! O gajo era monstruoso… enorme… agitava o mar… nasciam rochas por ali… e os peixes enormes… era um “ver se te avias”, de naus ao fundo! O Adamastor! Um velho mesmo bravo para a idade que aparentava!

-Estás a referir-te à Cidade do Cabo!
-O que é isso?
-Na África do Sul…
-Para mim… é Chinês! Mas ouve, depois foi um sossego pela costa de Sofala acima…
-Beira…
-Já no Indico… rumo a Norte! Entrámos mais á frente no rio dos Bons Sinais para nos abastecermos de água potável…
-Rio Zambeze…
- Depois ancorámos na Ilha de Santa Helena…
-Angoche… ou seja, António Enes…
-An… quê?
-Também não interessa… era tudo em Moçambique… adiante!
-Desta ilha, fomos ancorar noutra um pouco mais a Norte, a Ilha das Cobras… existia por lá, uma vila tipicamente muçulmana povoada pela tribo Swahili, onde o Régulo matreiro nos disponibilizou um piloto experiente para guiar as nossas naus… na direcção de uma armadilha!
-Ilha de Moçambique…

-Pois… isso! Mas a uma certa altura da viagem sucedeu um episódio muito caricato! As nossas naus entraram numa baía mais a Norte… com águas suaves…a Baia de Santa Helena… local aprazível… para poder dar descanso ao material e ás tripulações… mas com todos a bordo… não é que um caramelo resolve pegar num batel e remar na direcção da praia levando meia dúzia de marinheiros? …o gajo queria fazer intercâmbio de mercadorias á fartazana!
-Como se chamava esse aventureiro?
-Fernão Veloso…
-Conheço!

“ À maneira de nuvens se começam
A descobrir os montes que enxergamos,
As âncoras pesadas se adereçam;
As velas, já chegados, amainamos,
E, pera que mais certas se conheçam
As partes tão remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento de Astrolábio,
Invenção de sutil juízo e sábio"


Desembarcamos logo na espaçosa
Parte, por onde a gente se espalhou,
De ver cousas estranhas desejosa,
Da terra que outro povo não pisou.
Porém, eu, cos pilotos na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do sol a altura
E compassar a universal pintura"


Achámos ter de todo já passado
Do Semicapro pexe a grande meta,
Estando entre ele e o círculo gelado
Austral, parte do mundo mais secreta.
Eis, de meus companheiros rodeado,
Vejo hum estranho vir, de pele preta,
Que tomaram, per força, enquanto apanha,
De mel, os doces favos na montanha”

“É Veloso no braço confiado,
E de arrogante crê que vai seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co’o cuidado
No aventureiro, eis pelo monto duro
Aparece, e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha"

“O batel de Coelho foi depressa
Pelo tomar; mas, antes que chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro descoberto".

“Da espessa nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros sem medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida;
Mas nós, como pessoas magoadas,
A resposta lhe demos tão tecida,
Que, em mais que nos barretes, se suspeita
Que a cor vermelha levam desta feita"

-Humm, estás com essa atenção toda e não me mandas calar… pensativo ou inspirado?
-Pensativo… é que… cá o Cidadão andou por essas paragens… umas águas calmas… via-se o fundo do mar… com areia clara… peixinhos coloridos… corais e plantas marinhas… quando descia a maré… eram centenas de metros de areal intervalados com lagoas azuis de água salgada… e os peixes… isolados nesses charcos… ao largo da baía… barbatanas de tubarões e lombos de golfinhos tracejavam a água… os nativos dedicavam-se á pesca… recorrendo a redes artesanais e armadilhas para o marisco… deslizavam pelas águas suaves em frágeis pirogas… troncos de árvore, escavados… com duas varas transversais firmadas nas extremidades e umas tábuas a servirem de estabilizadores de flutuação… na praia, as palmeiras e coqueiros faziam sombra a cubatas construídas em adobe, paus… e cobertas com colmo… as palhotas… mais para o interior da floresta… densa… ao subir uma encosta suave… existia uma aldeia indígena com todo o seu ambiente e rituais africanos… enraizados de uma cultura puramente Muçulmana! Havia um pontão onde os europeus deitavam moedas de escudo para o mar e os meninos… mergulhavam de seguida… indo apanhá-las para eles… sem qualquer equipamento… designa-se agora… por mergulho em Apneia! E olha que se aguentavam alguns minutos lá no fundo! Era fantástico! O Cidadão fez por lá muito Snorkling… E sabes que mais? Hoje em dia, para se efectuar a rota marítima com um navio convencional, demoramos três dias bem medidos entre Sofala e a baía de Santa Helena! Agora, o Cidadão imagina nesses tempos… ao sabor dos ventos!

-Afinal conheces aquilo…
-E bem… agora designa-se por Nacala… a baía de Nacala! Mas há uma coisa que não chego a perceber… Então… esse Fernão Veloso… não fez parte da tripulação do Vasco da gama?
-Fez!
-Ora, o Vasco da Gama andou nessas viagens… uns anos antes… foi ele que descobriu o caminho marítimo para a Índia… zarpou do Restelo… a oito de Julho de 1497 e chegou a Calecute, na Índia a vinte de Maio de 1498… depois de regressar a Portugal… empreendeu uma segunda viagem com início em 1502… e chegou à Índia em… 1504, regressou novamente ás origens e enveredou por uma derradeira viagem e… em 24 de Dezembro de 1524 morre em Cochim, como Conde da Vidigueira e Vice – Rei…
-Sim… porquê?
-Porque… então… na tua viagem não se passaram essas cenas… uma vez que decorreu mais tarde, em 1553… e nessa época já o Vasco da Gama tinha falecido!
-Pronto… realmente não se passaram… mas se te contasse a minha viagem de ida… tal qual aconteceu… sabes… foi um pouco monótona a partir do Adamastor… irias apanhar uma valente seca! E também prometi ao pessoal que, cada vez que contasse as minhas aventuras, as entrelaçava com as do Gama e a descoberta do caminho Marítimo para a Índia, imortalizando-o, ou seja, falando pela voz dele!
-Mas… sendo assim, como é que sabias dessas aventuras todas com o Gama?
-Ora bem, pelos marinheiros veteranos… os mais velhos que anteriormente tinham participado na primeira expedição do Gama à descoberta do caminho marítimo para a Índia… ainda pela flor da idade!
-Então vá, anda!
-Não posso andar! Bem sabes!!!
-Oh! Não é isso! Continua a contar as tuas aventuras!
-Realmente, quando os nativos correram atrás do Fernão Veloso, bem gritavam: “Na Kala”… “Na Kala”… “Na Kala”... Devia ser um grito de guerra! A ordem de ataque! Então, não é que o tipo parecia um moço de forcados? Sai-me do batel, todo empertigado e avança para o interior da floresta, se bem quando, decorrido algum tempo, volta a surgir, correndo a grande velocidade, á frente de umas centenas de nativos bem equipados de zagaias! Olha, o que lhe valeu foram os nossos homens que partiram em seu auxílio… mas aquilo esteve mesmo negro! Até o Vasco da Gama desembarcou para socorrer o Veloso, com umas dezenas de homens… travaram uma batalha renhida de onde o Gama se saiu ferido numa perna! Depois, vê lá tu, a lata do Veloso… dizia o gajo, que vinha a correr pela colina abaixo com a intenção de socorrer o pessoal da armada! O bazófias!
-É caso para dizer que foi por uma unha negra!
-Ãh? Essa agora não percebi!...
-Prontos, continua…
-Não pudemos ficar nessas paragens por muitos dias porque o pessoal da zona era hostil, zarpámos mais para Norte… e o marinheiro emprestado pelo régulo dirigiu a nossa frota em direcção da Ilha de Quilôa… onde nos aguardava uma cilada…
- Hoje em dia ainda é assim…
- Mas o Gama desconfiou da marosca e tomou conta da situação, bolinando rapidamente, indo ancorar ao largo de Mombaça! Aí, apanhámos um surto de escorbuto onde morreram muitos camaradas e partimos para Melinde!
“E foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia".

“- Apodrecia com um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava;
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião subtil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instructo,
Pela carne já podre assim cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha".

“Enfim que nesta incógnita espessura
Deixamos para sempre os companheiros,
Que em tal caminho e em tanta desventura
Foram sempre conosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos".

- Já chega!... Isso tudo no Quénia!
-Quénia? Chama-lhe lá o que quiseres! Ainda capturámos uma embarcação aos infiéis e aportámos em Melinde por uns diazitos a resolver a ressaca do escorbuto! Aqui os povos eram mais amistosos do que nas paragens anteriores em que nos tentaram pregar algumas partidas sacanas e a despedida para a próxima etapa foi envolta numa festa grandiosa! Vê lá que até nos emprestaram um experimentado navegador melindano! Mas o pior ainda estava para acontecer… O sacana do Baco conseguiu convencer uma data de Deuses a dar-nos cabo do canastro! Aí sim… foi uma tempestade medonha! Estavam os portugueses entretidos nas naus a contar histórias uns aos outros para não adormecerem… ainda não havia televisão…tudo começou com umas borrascas, quando se levantou um forte vendaval durante a noite… rasgou velas, arrancou mastros, via-se o fundo do mar, caraças! Para tu imaginares a coisa, até passavam árvores a voar, por cima das naus, vindas da costa! Ficámos todos esfarrapados! As naus alagadas, os mastros partidos, tudo a gritar! Na costa, ao longe, vislumbrava-se tudo dizimado e destruído! Aquilo deve ter sido um furacão dos grandes! Até o valente Vasco da Gama pediu ajuda Divina!
-Espera aí! O Vasco da Gama outra vez?
-Pois! Já te expliquei porquê! Não sejas lerdo!
-Sabes dizer “lerdo?”
-Pois, foram umas tipas que estiveram sentadas á conversa, aqui ao pé de mim... e se eram boas! Se soubesses as conversas que eu lhes apanhei! Olha que as mulheres juntas… têm conversas muito mais desinibidas que os homens… nem imaginas!
-Adiante! Deixemos por agora as mulheres sossegadas!

-Foi com tudo esfrangalhado que avistámos terra firme e de confiança! Numa linda madrugada! Vénus, como sempre, ajudou-nos mais uma vez… enviou-nos umas Ninfas amorosas que acalmaram os ventos enviados por Eolo sob as ordens de Baco, esse grande bêbedo, sempre a verter lágrimas de crocodilo! O estúpido!!! Deve ser das ressacas!! O gajo até conseguia dar a volta a Neptuno, vê lá tu! Entretanto era madrugada quando avistámos a tal costa… avistámos, quer dizer… quem a avistou foi o piloto emprestado pelo Rei de Melinde! Ora se o Gama ficou feliz! Fez uma grande oração de agradecimento aos Deuses amigos e invocou a Glória!
Estava o Cidadão a pensar nisto, em silêncio… eram decorridos uns escassos minutos quando se ouviram passos rápidos e curtos, provavelmente de sapatos femininos… “trep, trep, trep, trep”… foram-se aproximando, o som aumentou progressivamente… “trep, trep, trep, trep”… parou subitamente, arrastou-se sola na calçada… iniciaram… e foram-se afastando num ritmo muito mais rápido…“trep, trep, trep, trep”!
-O que foi aquilo, Camões?
-Era uma mulher… regressa do trabalho, todos os dias a esta hora… passa por aqui em direcção a casa… e logo de manhã, aí pelas oito horas, volta a passar, em sentido contrário… deve ser quando vai para o emprego!
-Ás oito, Camões? … Mas isso são muitas horas de trabalho! Agora vai a ser meia-noite e meia!!!
-Pois é… tem dois filhos a estudar na universidade… e sacrifica-se para que eles estejam bem na vida! Que tenham um futuro promissor! É uma escrava! O marido não ajuda muito lá por casa… e ela, com espírito de sacrifício e amor de Mãe, mói-se a trabalhar para trazer algum ao fim do mês! Para pagar os estudos o alojamento, vestir e dar de comer ao filho e á filha! É revoltante!
-Porque será que ela parou ali atrás?
-Não sabes? Achou estranho estares aqui á conversa comigo… não te esqueças que sou uma estátua… depois teve medo, coitada… e desatou a fugir!
-Agora, fora de brincadeiras e de brejeirices… Camões… as mulheres têm um enorme espírito de sacrifício. Já reparaste? Acumulam as tarefas de Mãe, de esposa, a doméstica, vão trabalhar para sustentar a família… e por vezes… algumas regressam a casa e são espancadas pelos maridos! Estes, por vezes, limitam-se ao horário normal de trabalho, vão para os cafés estourar os fígados em álcool, outros, em casa limitam-se a exigir o jantar, tudo feito, passado e arrumado, sentam-se no sofá a ver os jogos de futebol ou as novelas e servem-se delas como se de objectos se tratassem… É a sociedade machista e hipócrita em que vegetamos! Daí, a razão de ser, que, em caso de sofrimento ou de doença, elas tenham maior resistência do que eles… em situações análogas, não passam de uns matulões piegas e mimados! O mesmo sucede em momentos de risco… elas tem maior capacidade de reflexão, discernimento e optar pela solução mais adequada ao momento, enquanto que eles, tendem para soluções irreflectidas, tomando decisões precipitadas e menos adequadas ao momento! É do treino, da experiência, da genética… e há quem lhe chame… do sexto sentido! Um beijinho para todas as companheiras deste Mundo! Ah, ia-me esquecendo… disse à Companheira que regressava a casa mais cedo… e já é Domingo! Tenho que me ir embora, Camões!
-Não vás, fica mais um pouco!
-Não posso, Camões… mas para a semana, prometo que volto!
-Tu falhastes – me na semana passada!
-Não me ia molhar… pois não? Depois apanhava uma doença e nunca mais nos voltávamos a encontrar!
-Pronto… tens razão!
-Então adeus, Camões…
-Adeus… amigo! Não te esqueças… fico aqui… só… à tua espera!
-Vá, está a arrefecer… tchau!